Nasci e cresci em Porto Alegre. Comecei minha carreira por lá e, com o tempo, passei a viajar por todo o país. No dia 2 de maio, à noite, retornei em um dos últimos voos realizados no agora inundado Aeroporto Salgado Filho. Escrevo este artigo com o coração apertado diante de toda a tragédia que assola o Rio Grande do Sul. Costumo escrever sobre carreira, desenvolvimento profissional e liderança. E não posso deixar de fazer conexões com o momento que o Sul vive.
A tragédia de proporções épicas levantou um incrível senso de voluntariado e protagonismo da sociedade civil pelo Brasil. Resgates, suportes e doações em uma escala gigantesca demonstraram nossa capacidade de organização em um cenário extremo.
Sobreviver é nosso maior imperativo e fomos testados ao limite. A resposta foi estrondosa.
Nesse cenário caótico, visitei um centro de acolhimento em uma tentativa de colaborar e entender a escala do que estava acontecendo com as milhares de pessoas que foram desabrigadas. Ouvi relatos impressionantes, como a história de um jornalista da cidade de Eldorado do Sul que perdeu tudo e estava sem nenhum acesso a informações. Sem telefone, nem contatos, não podia exercer seu trabalho. Ele estava angustiado por não saber o que estava acontecendo e por não poder informar. Próximo a ele, uma mulher relatou o desespero que passou durante oito horas agarrada a uma grade esperando socorro. E assim milhares de gaúchos tiveram suas vidas despedaçadas. Agora estavam sendo acolhidos pelo brilhante trabalho de voluntários e órgãos do governo.
Em meio ao caos que a cidade se transformou, o medo de uma escalada de crimes é mais um fator de alerta. Um dado que assusta a todos são os estupros e importunação sexual nos abrigos. Vários criminosos foram presos e muitos eram familiares das próprias vítimas, o que mostra que esses crimes sexuais já aconteciam. Foram expostos e presos.
Essas histórias chocantes nos aproximaram de um Brasil que fica distante das reuniões corporativas e da maioria dos projetos empresariais. Minha reflexão passa pelo quanto estamos afastados da realidade brasileira. Pelo quanto temos um Brasil marginalizado que passa distante do olhar de boa parte dos CEOs e do meio empresarial. E pelo quanto as próprias ações empresariais nem sempre contemplam um olhar para a linha de frente. Esse desabafo pode ser minha própria confissão. Somos empresários, consultores e executivos pouco conectados com a realidade dramática da maior parte do Brasil. Nos castelos corporativos pouco sabemos sobre a dor real da ponta, dos funcionários mais simples e da realidade difícil do dia a dia.
O choque que vivemos em Porto Alegre, talvez, nos faça refletir para uma sociedade menos polarizada, conectada e solidária. Não apenas em eventos extremos, mas também no comportamento geral e no senso de coletividade. As conquistas que precisamos como sociedade passam por um pacto profundo de mudanças. Sair do famoso “jeitinho brasileiro” para “fazer o certo”.
O relatório do IPEA (Pesquisa de Ação Social das Empresas) vem mostrando avanços no engajamento social das empresas, no entanto, ainda temos um caminho pela frente. Esse evento trágico pode ser um alerta para reforçar essa direção.
A onda positiva de apoio e a ação conjunta da sociedade precisa ser mantida para nos fortalecermos como nação. A Europa no pós-guerra precisou de um grande pacto de reconstrução, assim como outros países abalados por situações extremas. A tragédia que vem passando o Rio Grande do Sul pode ser um recomeço de atitudes e reorganização das relações na sociedade. E, quem sabe, um divisor de águas para um novo Brasil.
Rafael Souto é sócio-fundador e CEO da Produtive Carreira e Conexões com o Mercado